Monday, July 23, 2007

Imagens, turismo e autenticidade (parte 2 de 3)

É dentro do contexto abordado (Imagens, turismo e autenticidade – parte 1), que surge na actualidade o termo viajante, ao qual me atreveria a designar de turista reflexivo. Contudo, esta divisão entre turista / nativo e viajante / nativo, representa na sua essência a divisão tradicional entre baixa e alta cultura, aproximando-se perigosamente do modelo de literatura de viagens do séc. XIX, que estabelecia as diferenças entre o “viajante ilustrado” e o “nativo selvagem”. De igual modo, a introdução do termo viajante contrapõe-se ao termo turista, acentuando a dialéctica, ficando este último associado a todo um conjunto de conotações profundamente negativas, destacando-se entre muitos outros aspectos, na sua própria forma de vestir.

Importa ainda referir, de acordo com James Clifford, que o nascimento do termo “nativo” no seio da antropologia tradicional, sustentado ideologicamente como o “Outro”, surge construído enquanto sujeito não ocidental, representante das “verdadeiras culturas tradicionais locais” ao qual era dada a palavra apenas através da mediação do antropólogo (Clifford, 1999). O turista encerra em si mesmo essa procura do verdadeiro, do tradicional, do local, em suma, a procura constante do “autêntico”.

O conceito de autenticidade, cuja primeira abordagem surgiu, tal como já referido, com a obra de Dean MacCannell (1976), tem vindo a ser o centro de inúmeras fundamentações teóricas, situando-se actualmente numa perspectiva mais émica, que considera a autenticidade com algo de emergente, de produzido e de negociado.
A imagem do habitante local (prefiro definitivamente este termo ao de nativo) é acima de tudo o produto de um processo relacional, através do qual é construída uma representação de sentido comum. Essa representação deve satisfazer os desejos dos turistas, bem como os interesses da própria população local em constituir-se enquanto um atractivo turístico interessante. Trata-se, no fundo, de um problema ligado a questões de interacção e não tanto de um problema de autenticidade ou de falta dela.

É nesta perspectiva, contrária à defendida por MacCannell, que a autenticidade é um conceito socialmente construído, tendo como base a negociação. Assim, é exactamente sobre este processo de negociação que os estudos antropológicos do turismo deveriam incidir (Cohen, 1988). Não nos interessa saber se a experiência do turista é autêntica, tal como o fazia MacCannell, mas sim saber quando é que ela se torna num jogo, trabalhando denotativa e conotativamente o olhar do turista. Edward Bruner, ao considerar que o autêntico se torna num facto apenas quando a “dúvida” surge (1994: 403), refere-se ao facto da autenticidade ultrapassar um conceito teórico puramente abstracto, algo apenas existente na maioria das mentes dos turistas e “nativos” (Bruner 1991: 241). De acordo com Bruner, a autenticidade deve ser considerada como um produto emergente das relações entre actores sociais inseridos em contextos bem definidos. Trata-se, ainda segundo Bruner, de uma “luta”, na qual os sujeitos lutam por definir a realidade de algo e onde inúmeros processos sociais estão presentes e em jogo. A autenticidade assume-se assim como um conceito igualmente fundamental para reflectir sobre a tensão global-local.

Autenticidade como sintoma de modernidade
Os destinos turísticos, bem como todos aqueles que o pretendem tornar-se, utilizam todas as estratégias ao seu dispor tendo como objectivo principal a atracção de visitantes. Desta forma, grande parte dos recursos disponíveis de um lugar são sujeitos a uma cuidadosa preparação, prontos a converterem-se em objectos de consumo.

Contudo, à excepção daqueles explicitamente preparados para o turista, nem todos os recursos de um lugar têm a capacidade de ser apresentados, contemplados e entendidos na sua totalidade por vezes complexa. De acordo com Santana Talavera, a maioria encontra-se exclusivamente adaptada ao olhar e não à leitura (2003: 1).

O fenómeno turístico é uma actividade dinâmica, em constantes modificações, baseado essencialmente num sistema económico de oferta / procura. Daí, o nascimento de novas formas de turismo cada vez mais sofisticadas – o turismo em espaço rural, as viagens de aventura, a paixão pela natureza ou pelo exótico de outras culturas. O turismo foi-se adaptando às novas exigências de procura do mercado, tornando-se os locais e as actividades, que aí decorrem, em meros produtos para consumo.

O turista tornou-se assim num cliente ávido de consumo, de conhecimento – ainda que não científico – , mas de um conhecimento objectivo baseado num olhar turístico que a viagem lhe proporciona. Daí advém o seu interesse pela natureza e pela cultura que, de uma forma intuitiva, considera estarem na fronteira de um desaparecimento eminente. Interessa-se assim pelos habitantes locais, pelas suas identidades, pela sua cultura material, pelas suas raízes históricas, pelo seu passado, modos de vida e rituais em que participam, tendo sempre presente um profundo sentimento de nostalgia, que despertam recordações, espaços e tempos mais imaginados que vividos (Santana Talavera, 2003: 6).

Esta procura da autenticidade, imaginada e construída, tratou-se de um processo que teve a sua origem em ambiente urbano. Essa nostalgia pelo passado, pela memória, era essencialmente protagonizada pelo turista (proveniente dos centros urbanos) que procurava noutros lugares o tradicional – em evidente “extinção” – dando origem a uma procura constante de signos (icónicos, indiciais ou simbólicos) que teriam de cumprir uma função, a de autenticidade dos lugares visitados (regra geral em ambiente rural ou, se preferirmos, com uma forte relação com a natureza).

Dos discursos existentes acerca das populações rurais, um deles, o de Mondher Kilani, tem um papel relevante na construção da imagem do espaço e respectiva população residente. O habitante da montanha é representado enquanto “depositário do território e guarda da «autenticidade» num mundo em contínua agitação” (Kilani, 1994: 137). Esta imagem estabelece a relação entre tradição e modernidade, entre passado e presente. Uma relação que, ainda segundo Kilani, “constitui o eixo privilegiado a partir do qual se representa a realidade económica, social e cultural da montanha actual” (1994: 137).

À actividade turística interessa esta dialéctica. Uma dialéctica tradição / modernidade, passado / presente, natureza / cultura, que legitima ideologicamente as diferenças nos modos de vida, nos processos sociais, nas representações. Contudo, tradição e modernidade, ou passado e presente, não podem ser encarados enquanto conceitos estáticos, uns existem por força da existência dos outros. A tradição demarca-se em relação ao moderno, tal como o moderno se demarca em relação àquilo que surge como tradicional, numa dinâmica permanente. Nesta relação, torna-se aliás interessante verificar na actualidade, o constante retorno ao tradicional enquanto manifestação da própria modernidade (Paulino, 2001: 151). A característica estática que habitualmente se encontra ligada à tradição, deixa assim de fazer sentido. De igual modo, a antropologia política atribui ao tradicionalismo todo um conjunto de características dinâmicas implicando tal facto que as sociedades tradicionais não fiquem condenadas a permanecer para sempre presas ao seu passado (Balandier, 1987: 174).

Também a modernidade, segundo Clifford Geertz, acaba por assumir-se enquanto “processo, uma sequência de acontecimentos que transformam uma forma de vida tradicional, estável”, numa outra com uma capacidade de adaptação, com uma dinâmica própria (Geertz, 1996: 137). As formas de vida que se estabelecem em ambiente rural são meras etapas de uma “longa trajectória histórica com uma dinâmica intrínseca, uma determinada forma e direcção” (1996: 138).

James Clifford, ao explorar o conceito de autêntico, dá conta do facto de na maioria das vezes a autenticidade ser “uma questão de tudo ou nada” (1999: 221), sugerindo a necessidade de colocar de lado toda uma análise baseada numa oposição binária, optando assim pela designação de uma autenticidade híbrida (1999: 221-232).

Assim, a autenticidade terá de ser encarada enquanto um processo permanente de construção e reconstrução do lugar, do passado, da cultura, cujo papel activo é igualmente desempenhado pelos habitantes locais. O turismo surge assim como um processo de mudanças (não necessariamente negativas), que obriga a (re)ler o passado e o presente, a (re)adaptar significados. Estes processos são em si mesmos elementos culturais dinâmicos, cujos protagonistas não poderão nunca ser considerados sujeitos passivos do sistema cultural do qual fazem parte. As suas experiências, as suas maiores ou menores adaptações, as suas (re)construções, a sua imaginação transformam-nos em elementos de inovação e mudança, na maioria das vezes fruto da influência externa provocada pelo próprio turismo. De entre estas influências, há um papel particularmente interessante de ser analisado. O papel desempenhado pelas imagens presentes na publicidade da indústria turística.



© Fernando Faria Paulino


© Fernando Faria Paulino


Bibliografia
BALANDIER, Georges (1987), Antropologia Política, Lisboa, Editorial Presença.
BRUNER, Edward (1991), «Transformation of self in tourism», Annals of Tourism Research, 18 (2), pp. 238-250.
CLIFFORD, James (1999), Itinerarios Transculturales, Barcelona, Editorial Gedisa.
GEERTZ, Clifford (1996), Tras los hechos. Dos países, cuatro décadas y un antropólogo, Barcelona, Paidós.
KILANI, Mondher (1994), L’invention de l’autre, essais sur le discours anthropologique, Lausanne, Editions Payot.
MACCANNELL, Dean (1976), The Tourist: A New Theory of the Leisure Class, New York, Shocken Books.
PAULINO, Fernando Faria (2001), Transumância da Estrela ao Montemuro. Da tradição à modernidade: a longa viagem da cultura pastoril, dissertação de mestrado, Porto, Univ. Aberta.
SANTANA TALAVERA, Agustin (2003), «Patrimonios culturales y turistas: unos leen lo que otros miran», Pasos Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, vol. 1, nº1, pp. 1-12.

2 comments:

Anonymous said...

Muito interessante

Anonymous said...

Boa noite!
Como o mundo é pequeno, ou neste caso a internet é que o torna! Cheguei até ao blog do professor atraves da fotografia "autenticidade04" esta última, gosto muito, fiquei também satisfatoriamente surpreendido por conhecer este seu espaço literário.
Cumprimentos