Tuesday, July 31, 2007

Imagens, turismo e autenticidade (parte 3 de 3)

O conceito de autenticidade é igualmente fundamental no processo de recepção de uma imagem sendo através dele que as imagens adquirem o seu valor. Walter Benjamin (1989) remete-nos para o facto de que o original de uma reprodução é compreendido enquanto sendo mais autêntico do que as cópias realizadas a partir desse original. De acordo com Benjamin a autenticidade não pode pois ser reproduzida. Tradicionalmente, o conceito de autenticidade significava genuíno, fiável, verdadeiro ou não copiado, ou num sentido ainda mais lato, surgia associado à ideia de “real” (Sturken e Cartwright, 2001: 123).

O mundo em que hoje habitamos é um mundo repleto de imagens visuais. O papel por elas desempenhado está no centro dos processos das nossas representações, da nossa produção de significados e das formas como comunicamos. Muitos dos significados, produzidos e consumidos quotidianamente, de entre os quais se destaca a autenticidade, são veiculados visualmente. Para Mirzoeff, “a cultura visual não depende das imagens em si mesmas, (...) o centro de interesse é colocado no visual enquanto lugar onde os significados são criados e contestados” (1999: 5-6). Assim, a cultura visual caracteriza-se pela centralidade dos elementos visuais nos processos de comunicação e compreensão daquilo que nos rodeia.

Os mecanismos de produção, difusão e recepção de significados, são na actualidade fundamentais para a compreensão dos significados socialmente produzidos, nomeadamente ao nível dos processos económicos, políticos, sociais e culturais. No mundo contemporâneo os sistemas visuais são os elementos mediadores desses mesmos significados (Mirzoeff, 1999; Messaris, 2001).


O papel da publicidade na autenticidade dos locais turísticos

O papel desempenhado pelas imagens na publicidade turística (sob a forma de catálogos, folhetos, cartazes, spots televisivos,...) é fundamental no turismo enquanto processo de mercantilização da cultura (Greenwood in Smith, 257-279). Assim, as imagens terão de exaltar uma pluralidade de significados, envoltas em instantaneidade, fundindo tempo e espaço, bem como elementos de diferentes períodos históricos. Terão pois de ser altamente simbólicas, sendo os destinos representados enquanto lugares românticos, carregados de beleza, paixão, nostalgia, recorrendo inúmeras vezes ao passado, à história e à memória, contribuindo para a expectativa e o desejo de viajar por parte do turista. Assim, a grande maioria de catálogos turísticos apresenta nas suas páginas fusões de elementos icónicos, cuja omnipresença remete o leitor para um “encolhimento” do espaço físico e uma “compressão” do tempo. Desta forma, o mundo pode ser semioticamente apropriado e consumido sem que abandonemos o conforto das nossas casas.

A primeira imagem de um lugar turístico é assim composta por representações construídas com base em muitas outras imagens, sendo essa imagem, mais tarde, sujeita a um processo de (re)interpretação, a partir do momento em que se dá o confronto com o espaço real. O espaço turístico é assim recriado, dando origem a novas imagens. Todo esse conjunto de representações está na origem de imagens extremamente complexas, densas numa perspectiva semiótica. Todos estes processos são de tal modo importantes no mundo do turismo, que intervêm directamente na construção do lugar turístico.

Contudo, as campanhas publicitárias turísticas (de carácter informativo) não se destinam apenas ao potencial turista / visitante. A sua construção carregada de valores e significados, mostra às populações de acolhimento qual o seu património cultural, qual o seu passado, quais as suas memórias, determinantes para uma espécie de exaltação patriótica (e valores associados) e respectiva (re)apropriação do património. De igual modo, a glorificação das paisagens dá origem a uma reinvenção da natureza, transformando-as em património cultural.

A actividade turística abre assim as portas à imaginação, tendo um papel activo, por vezes determinante, nas formas de ver e sentir o mundo. As campanhas publicitárias da indústria turística, na sua produção de sentido, exploram pois simultaneamente “realidade”, “mitos” e “imaginação”, cujo público alvo não é somente o potencial turista, como também o habitante local, que terá um papel fundamental quando desempenhar a sua função de anfitrião.

Desta forma, as imagens publicitárias de âmbito turístico reclamam autenticidade enquanto estratégia de apelo ao consumo, trabalhando simultaneamente tradição e modernidade, passado e presente, algo a que apenas é possível ter acesso pela vivência e experiência turística no próprio espaço, num tempo definido, sendo pois impossível a sua reprodutibilidade.

Este foi o convite que terá sido efectuado através da campanha publicitária “Portugal, profundamente”, produzida pelo ICEP, cujos spots televisivos foram premiados no Tourfilm 2005 (o maior e mais antigo festival de filmes turísticos, que tem lugar anualmente na República Checa). A campanha optou por um modelo comunicativo de publicidade que funde passado e presente, tradição e modernidade, natureza e cultura, tempo e espaço, produtor e receptor. No spot publicitário “Romance eterno”, um dos produzidos para a referida campanha, esta fusão é construída em torno da noção de romance cuja mensagem linguística, simples na sua forma, trabalha de uma forma precisa a maioria dos conceitos analisados até ao momento.







Romance eterno

Apaixone-se por Portugal,
Pelos amores de outras eras
E pelos lugares misteriosos.
Por um canto de saudade,
Por um poema,
Por um rio.
Entre nos palácios de contos de fadas
Passeie nas florestas encantadas
Descubra os recantos idílicos.
Abra o coração das cidades
Viva momentos inesquecíveis
Num país incorrigivelmente romântico.
Entregue-se a uma nova paixão.
Venha conhecer Portugal... profundamente.




Contudo, a “força” do spot residia na sua totalidade significante, para a qual contribuíam as imagens, a mensagem verbal e a banda sonora, daí resultando uma “complexidade de linguagens parciais fundidas” (Canevacci, 2001: 155). Ao longo do seu visionamento, surgia a “dúvida”. Os planos abertos, de curta duração, a utilização de ângulos picados e de travellings, não permitiam uma rápida localização espacial. Essa localização era por vezes conseguida, por breves instantes, através do reconhecimento de um ou outro elemento icónico que permitia situar geograficamente o leitor.

Mas o aspecto interessante da campanha, foi o facto das diferentes versões linguísticas (francês, inglês, castelhano, alemão...), supostamente destinadas ao mercado externo, terem sido igualmente emitidas em Portugal, com igual tempo de antena. Na maioria dos casos, devido ao não domínio do respectivo código linguístico por parte do receptor, redobravam-se as “dúvidas”, que após a sua dissipação, tornavam o país mais “autêntico”, “único”.

A autenticidade de um país era assim socialmente construída, trabalhando-se denotativa e conotativamente o olhar do espectador, apelando-se aos diversos códigos de leitura / recepção. A “dúvida” surgia como uma das questões centrais na construção da autenticidade. Contudo, essa construção ultrapassou a esfera individual. O conceito em si foi construído colectivamente, resultado de uma negociação, cujo papel desempenhado pela fusão de linguagens e conceitos explorados foi determinante.

Conhecer o país “profundo” significa, de acordo com o discurso turístico, mergulhar na sua história, nas raízes e nas memórias de um povo, permitir a construção de um olhar, não superficial mas profundo, possibilitar o acesso ao “único”, ao “autêntico”, desempenhando na actualidade um papel preponderante na imagem de um espaço potencialmente turístico.




Bibliografia
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BENJAMIN, Walter (1989), «La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica» in Discursos Interrumpidos I, Buenos Aires, Taurus.
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URRY, John (1997), «Tourism and the Photographic Eye» in Touring Cultures, Transformations of travel and theory, London, Routledge.

1 comment:

Anonymous said...

Excelente análise e exposição.
Parabéns.
JTB