Monday, December 08, 2008

Tuaregue, uma experiência de deserto

A 3 de Abril de 1992 era noticiado nos orgãos de comunicação social portuguesa os três ataques consecutivos levados a cabo por tuaregues, à expedição portuguesa que tentava efectuar a ligação Lisboa-Luanda ao longo do continente africano.

Viaturas, dinheiro, objectos e documentos pessoais desapareceram durante uma etapa de deserto. Só a intervenção por parte do governo português, que colocou à disposição da caravana um Hércules C-130 da Força Aérea, permitiu o repatriamento dos 70 expedicionários portugueses. O jornal Público noticiou o acontecimento com o sugestivo título "O dia mais longo no país dos tuaregues".

Foram várias as pessoas que nos dias seguintes me abordaram, para a pergunta redutora. Afinal os tuaregue eram "bons" ou "maus"? As notícias vindas a público contrariavam de alguma forma as imagens que eu vinha transmitindo ao longo dos anos, àcerca deste povo berbere do deserto, com os seus territórios repartidos pelos diversos países do norte de África.

Decorridos precisamente nove dias dos referidos incidentes, encontrava-me já em Tânger, preparado para rumar a sul, nas poucas pistas passíveis de serem atravessadas, sem autorização especial ou escolta militar.

O fascínio do deserto e pelo deserto. A sua dimensão oculta. Mano Dayak, antropólogo, um dos tuaregue que mais lutou pela causa do seu povo, escreveu um dia: "O deserto não se conta, vive-se" (Durou, 1994:8). Concordei eu próprio mais tarde com a veracidade de tal afirmação. Por mais relatos que tivesse lido sobre o Deserto do Sara, é a própria vivência que nos leva a conhecê-lo melhor.

O deserto é um espaço privilegiado de relações. De relações com o meio, de relações com os seus habitantes, de relações com nós próprios. É este processo de relações, de comunicação, que nos leva a conhecê-lo melhor.

Foi a necessidade de melhor compreender a minha relação com o deserto, a minha posição nesse processo de comunicação, que me levou a procurar testemunhos dos seus habitantes, relatos dos viajantes ao norte de África, relatos dos exploradores que o atravessaram. Enfim, testemunhos de experiências do deserto.

Foi assim que a minha rota se cruzou com "A Primeira Travessia do Sara em veículo motorizado", levada a cabo pela Citroën em 1922.



Tal expedição reunia todo um conjunto de ingredientes, cuja desconstrução me pareceu desde logo aliciante. Tratava-se à partida, da primeira travessia do deserto utilizando veículos motorizados, era empreendida por uma empresa, situava-se numa época de consolidação da política colonial europeia, no período pós Grande Guerra, em plena expansão industrial do continente europeu. Ao longo da expedição tinham sido realizadas centenas de fotografias que dariam origem à publicação do diário da expedição e, recolhidas imagens cinematográficas que deram origem ao grande filme documentário "A Travessia do Sara", cuja estreia recebeu o alto patrocínio do Presidente da República Francês.



A ideia base do projecto, segundo André Citroën, nasce da procura de uma ligação prática entre a Argélia e a África Ocidental Francesa. É em consequência da I Grande Guerra e devido à necessidade de fazer chegar à metrópole francesa os recursos existentes nas suas colónias (Senegal, Guiné e Congo) que surge a ideia do raide trans-sariano. O Sara surgia pois como o grande obstáculo que era necessário vencer.

É assim que cinco viaturas equipadas com um sistema de lagartas, transportando 10 exploradores e uma cadela (esta, com um papel activo ao longo de toda a expedição), partem de Touggourt a 17 de Dezembro, atravessam 3.500 quilómetros de deserto e, vinte e dois dias mais tarde, chegam a Tombouctou. O veículo motorizado acabara de vencer o deserto.



Vale a pena citar o discurso de André Citroën, quando teve conhecimento do êxito da expedição: "No momento em que entram na pérola do Níger, depois de terem executado esforços sobre-humanos, um trabalho de titã pela causa da humanidade e pelo triunfo da indústria francesa, faço questão de vos exprimir do fundo do coração a alegria que sinto" (cit. Wolgensinger, 1992, p.146).

Era a vitória da Citroën, da indústria francesa sobre o Sara. O deserto havia sido conquistado. Expressões que alimentavam o imaginário colonial, representações de um processo, sinais de supremacia. A Europa fazia história em África. O diário de viagem e o filme documentário encarregar-se-iam disso mesmo.

Paul Castelnau, doutorado em Ciências, era o geógrafo da expedição. Para além de outras tarefas, fora-lhe incumbida a realização das filmagens. Refere Haardt no diário, que "graças a Castelnau, a missão recolheu uma enorme quantidade de documentos do mais alto interesse" (Haardt, 1923, p.34). Tratava-se da recolha de imagens como objectos, acto revelador de um espírito positivista, da recolha da diversidade do mundo para posterior classificação e conservação. Como afirmaria Marc Piault, um "espírito de colecta, de identificação e de apropriação característico do desenvolvimento europeu" (1992:59).



A "Travessia do Sara" marca o espírito de uma época. A visão do Outro como um absurdo, sem valores, reconhecido apenas pelo seu valor exótico. Uma verdadeira des-realização dos Outros, segundo Piault (1992:59). Tais factos alimentavam e satisfaziam as necessidades dos leitores de livros-relato de expedições e as audiências dos filmes de exploração.

Os leitores e as audiências maravilhavam-se com os actos heróicos dos seus exploradores, sentiam-se eles próprios fazendo parte da aventura. O exótico e o misterioso completavam os ingredientes. O norte de África prestava-se a tal. Tombouctou, "a misteriosa", era o destino final. "De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide", o sub-título, remetia o leitor para a misteriosa origem dos tuaregue, a lenda da Atlântida.

A própria face velada do homem tuaregue servia o efeito mistério. O litham impossibilitava a sua desconstrução, impossibilitava o apoderar-se do Outro, facto que leva Haardt a usar a expressão, "irritantemente cobertos", referindo-se aos homens tuaregue.



As mulheres, igualmente sujeitas a um olhar, chocam pelas atitudes consideradas libertinas, provocadoras e, pela sua liberdade e autonomia perante o homem tuaregue. A honra da presença feminina nestas paragens, parece apenas ser salva por Flossie, a cadela "exploradora", de cor branca, símbolo da elegância feminina francesa, e do bom senso pelos comentários que vai tecendo àcerca de tudo quanto observa. Irrita-se com as danças e o barulho do tam-tam e afasta-se, comentando: "Estes disparates não me interessam" (Haardt, 1923:134).



A 26 de Dezembro de 1922 a expedição atinge a região do Hoggar. "É feita a distribuição de presentes a estes grandes larápios do deserto, que acham muito natural tudo quanto lhes oferecemos. Antigamente, antes de sermos os donos do país, ter-nos-iam massacrado para obterem tais ofertas pelos seus próprios meios" (Haardt, 1923:97).

Os finais de etapa eram apoteóticos. Pequenas vitórias acumuladas, num crescendo de emoção, contribuiriam para a conquista final do Sara. O ponto da situação era enviado diariamente para a Europa, via rádio. O mundo inteiro acompanhava o dia-a-dia da expedição. O desenvolvimento tecnológico lado a lado com a expansão colonial.

O deserto do Sara funcionaria como "um verdadeiro laboratório de ensaios" (Haardt, 1923:16) para as futuras expedições da Citroën. De mãos dadas, a exploração, a expansão colonial, o cinema e a etnografia. A apropriação do espaço, do território, dos Outros. Segundo Marc Piault, seria esta necessidade de apropriação de "sociedades cada vez mais distantes das nossas, tanto geograficamente, como fisicamente, materialmente ou culturalmente, a justificar todo o empreendimento da exploração" (Piault, 1992:59).



Em França, a recolha de imagens do mundo não era uma tarefa exclusiva dos etnólogos, como afirmou José Ribeiro, (1995: 66 e 80) referindo-se nomeadamente à empresa Citroën. Era a própria recolha de imagens que justificava as expedições. Refere Marc Piault a este propósito, que as imagens recolhidas "reforçavam o conjunto de representações e discursos sobre o progresso e, as missões «civilizadoras» do homem branco" (Piault, 1992:59).

Cinema, fotografia, antropologia e expansão colonial, num percurso paralelo. Este poderia ter sido o título, do presente texto.

A empresa Citroën, na sua página oficial da Internet, apresentava-nos um espaço dedicado ao tema "Citroën e a aventura". Aí, deparavamo-nos com o seguinte texto: "Expedições Citroën: você não imagina tudo o que a Citroën faz para reduzir a distância entre os povos" (Citroën, s.d.).

As marcas dos novos caminhos foram efectivamente deixadas. Para os tuaregue, ou melhor para os imazighen, homens livres como eles próprios se denominam, as consequências de tais marcas também permanecem na vastidão do Sara.

Para reflexão, gostaria apenas de referir um anúncio publicitário datado de 1994, em cujo corpo do texto lia-se: "Andar em plena liberdade e sem nunca parar é a especialidade da série limitada ZX Touareg".




Bibliografia
Citroën et l'Aventure, [online], disponível em: http: // www. citroen. com/ home-f.htm (acesso em 15.02.1999).
DUROU, Jean-Marc (1994), La Passion du Désert, Paris, Ed. de La Martinière.
HAARDT, Georges-Marie e Louis AUDOUIN-DUBREUIL (1923), La Premiére Traversée du Sahara en Automobile - De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide, Paris, Librairie Plon.
PIAULT, Marc-Henri (1986), "L'Anthropologie à la Recherche de ses images", in CinémAction, Paris, nº 38, pp. 52-57.
PIAULT, Marc-Henri (1992), "Du Colonialisme à l'Echange" in CinémAction, Paris, nº 64, pp.58-65.
RIBEIRO, José (1995), "Cem Anos de Imagens do Mundo, Panorama do Cinema Etnográfico Francês" in Imagens do Mundo - Mostra de Cinema Etnográfico Francês, Lisboa, C.E.A.S. / I.S.C.T.E., C.E.M.R.I. / Universidade Aberta, Serviço Cultural da Embaixada de França, pp. 65-81.
WOLGENSINGER, Jacques (1992), André Citroën, uma biografia, Lisboa, Contexto Editora.




nota | Comunicação apresentada nos Colóquios de Antropologia Visual realizados na Universidade Aberta (Delegação Norte) em 12.03.99

© em todas as imagens (HAARDT, Georges-Marie e Louis AUDOUIN-DUBREUIL (1923), La Premiére Traversée du Sahara en Automobile - De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide, Paris, Librairie Plon)
© ® Citroën

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