Monday, December 01, 2008

Antropologia da Comunicação Visual


® Silk Cut

A discussão em torno do cartaz publicitário da Silk Cut, presente no romance de David Lodge, Nice Work (1988) é um exemplo paradigmático dos processos de leitura desencadeados por uma imagem, da qual emergem estratégias de comunicação visual, numa profunda inter-relação entre a antropologia e a semiótica.

A passagem em questão (retirada da tradução portuguesa, Um almoço nunca é de graça, Ed. Gradiva, 2001), coloca em confronto dois personagens, Vic Wilcox, administrador de uma empresa, e Robyn Penrose, professora universitária de Literatura Inglesa.




® Silk Cut © Charles Saatchi, Gallaher, 1983


"(...)

Um exemplo típico disso foi a furiosa discussão que tiveram sobre o cartaz publicitário da Silk Cut. Regressavam de carro depois de uma visita a uma fundição em Derby que fora comprada por canibais de empresas e que tinha para venda um moldador de machos automático no qual Wilcox estava interessado, embora tivesse chegado à conclusão de que era demasiado antiquado para o efeito. De tantos em tantos quilómetros, assim parecia, passavam pelo mesmo enorme cartaz à beira da estrada, uma imagem fotográfica de uma extensão ondulada de seda púrpura na qual havia um único corte, como se o tecido tivesse sido golpeado com uma navalha. Não havia palavras no anúncio, excepto o aviso governamental do ministério da Saúde em relação ao tabaco. Esta imagem ubíqua, que passava como um relâmpago a intervalos regulares, intrigava e irritava Robyn, e esta começou a fazer o seu trabalho de semiótica na estrutura profunda oculta por baixo da superfície suave da imagem.

Era, à primeira vista, uma espécie de enigma. Isto é, para o descodificar era preciso saber que havia uma marca de cigarros chamada Silk Cut (nota do tradutor: corte de seda. Em calão, cunt é vagina). O cartaz era a representação icónica de um nome que faltava, como um logogrifo. Mas o ícone era também uma metáfora. A seda tremeluzente, com as suas curvas voluptuosas e textura sensual, simbolizava obviamente o corpo feminino, e o corte elíptico, através do qual aparecia um fundo ligeiramente mais claro, era ainda mais obviamente uma vagina. Assim, o anúncio apelava tanto aos impulsos sensuais como aos impulsos sádicos, o desejo de mutilar, bem como o de penetrar no corpo da mulher.

Vic Wilcox reagiu com um escárnio escandalizado quando ela expôs esta interpretação. Ele próprio fumava outra marca, mas foi como se sentisse que toda a sua filosofia de vida estivesse ameaçada pela análise que Robyn fizera do anúncio.

-Deve ter uma mente muito retorcida para ver isso tudo num pedaço de tecido perfeitamente inofensivo -disse.

-Então qual é o objectivo? -desafiou Robyn. -Para quê usar tecido para anunciar cigarros?

-Então, é assim que eles se chamam, não? Silk Cut. É a imagem do nome. Nem mais nem menos.

-Imagine que tivessem usado um rolo de seda cortado ao meio: acha que funcionava tão bem?

-Suponho que sim. Sim, porque não?

-Porque pareceria um pénis cortado ao meio, é por isso.

Vic Wilcox soltou um riso forçado para disfarçar o seu embaraço. -Porque é que vocês não conseguem tomar as coisas pelo seu valor facial?

-Nós quem?

-Os intelectuais. Estão sempre a tentar descobrir nas coisas significados ocultos. Porquê? Um cigarro é um cigarro. Um bocado de seda é um bocado de seda. Porque não os deixam por aí?

-Quando estão representados, adquirem significados suplementares - disse Robyn. -Os signos nunca são inocentes. A semiótica ensina-nos isso.

-Semi quê?

-Semiótica. O estudo dos signos.

-Ensina-nos a ter mentes porcas, na minha opinião.

-Porque é que acha que os malditos cigarros se chamam Silk Cut?

-Sei lá. É só um nome, tão bom como outro qualquer.

-Cut tem qualquer coisa a ver com o tabaco, não é? A maneira como se cortam as folhas do tabaco. Como o Player' s Navy Cut... O meu tio Walter costumava fumar isso.

-E daí? -disse Vic, cauteloso.

-Mas a seda não tem nada a ver com o tabaco. É uma metáfora, uma metáfora que quer dizer qualquer coisa como, «suave como a seda». Alguém numa agência de publicidade inventou o nome Silk Cut para sugerir um cigarro que não arranha a garganta, nem causa tosse seca, nem cancro no pulmão. Passados uns tempos, o público estava habituado ao nome, a palavra silk deixou de ter significado, por isso decidiram fazer uma campanha publicitária para tornar a dar à marca uma imagem de qualidade. Um espertalhão qualquer da agência veio com a ideia de seda ondulante cortada com um golpe. A metáfora original é agora representada literalmente. Mas surgem novas conotações metafóricas - conotações sexuais. Se a intenção foi consciente ou não, não interessa. É um bom exemplo do deslize permanente do significado por baixo do significante.

Wilcox meditou nisto por um instante, depois disse: -Então porque é que as mulheres os fumam, hã? -A sua expressão triunfante mostrou que ele pensava ser este um argumento arrasante. -Se fumar Silk Cut é uma forma de violação agravada, como você pretende demonstrar, então como é que as mulheres também o fumam?

-Muitas mulheres são masoquistas por temperamento - disse Robyn. -Aprenderam o que se espera delas na sociedade patriarcal.

-Ah! -exclamou Wilcox, deitando a cabeça para trás. -Não podia deixar de ter uma resposta tola qualquer.

-Não sei porque está tão enervado -disse Robyn. -Você não fuma Silk Cut.

-Pois não. Fumo Marlboro. Embora possa parecer-lhe estranho, fumo-os porque gosto do sabor.

-Esses são aqueles que têm o anúncio do cowboy solitário, não é?

-Suponho que isso faz de mim um homossexual não assumido, não?

-Não, é uma mensagem metonímica muito directa.

-Meto quê?

-Metonímica. Um dos instrumentos fundamentais da semiótica é a distinção entre metáfora e metonímia. Quer que lhe explique o que são?

-Para passar o tempo.

-Uma metáfora é uma figura de estilo baseada nas semelhanças, ao passo que uma metonímia se baseia na contiguidade. Na metáfora, substitui-se a própria coisa por algo como a coisa a que se esteja a referir, enquanto que na metonímia se substitui a própria coisa por qualquer atributo, causa ou efeito.

-Não percebo nada do que está para aí a dizer.

-Bom, imagine um dos seus moldes. A parte de baixo chama-se draga porque é arrastada pelo chão, e a parte de cima cúpula porque cobre a parte de baixo.

-Fui eu que lhe disse isso a si.

-Pois foi. O que não me disse foi que a «draga» era uma metonímia e «cúpula» é uma metáfora.

Vic grunhiu. -Que diferença é que isso faz?

-E só uma questão de compreender como funciona a linguagem. Pensei que estivesse interessado em saber como as coisas funcionam.

-Não vejo o que é que isso tem a ver com cigarros.

-No caso do cartaz da Silk Cut, a imagem representa o corpo feminino metaforicamente: o corte na seda é como uma vagina.

Vic estremeceu ao ouvir a palavra. -É a sua opinião.

-Todos os buracos, espaços ocos, fissuras e pregas representam os órgãos genitais femininos.

-Prove-o.

-Freud provou-o, através da sua bem sucedida análise dos sonhos - disse Robyn. -Mas os anúncios dos Marlboro não usam metáforas. Deve ser por isso que você os fuma.

-Que quer dizer com isso? -disse ele, desconfiado.

-Não tem nenhuma simpatia pela maneira metafórica de olhar para as coisas. Para si, um cigarro é um cigarro.

-Exacto.

-O anúncio dos Marlboro não incomoda a fé ingénua na estabilidade do significado. Estabelece uma ligação metonímica, completamente falsa, é claro, mas realisticamente plausível, entre fumar aquela marca determinada e a vida saudável, heróica e ao ar livre do cowboy. Quem compra o cigarro compra um estilo de vida, ou a fantasia de a viver.

-Tretas! -disse Wilcox -Detesto o campo e o ar fresco. Tenho medo de entrar num campo com uma vaca lá dentro.

-Bom, então o que o atrai talvez seja a solidão do cowboy nos anúncios. Seguro, independente, muito macho.

-Ora, os tomates! -disse Vic Wilcox, o que era uma expressão forte vinda dele.

-Tomates... Aí está uma expressão interessante... -meditou Robyn.

-Oh, não! -gemeu ele.

-Quando se diz que um homem «tem tomates», aprovativamente, é uma metonímia, mas quando se exclama «os tomates!» em relação a qualquer coisa, é uma espécie de metáfora. A metonímia atribui valor aos testículos, enquanto a metáfora os usa para rebaixar outra coisa qualquer.

-Não aguento mais isto -disse Vic. - Importa-se que eu fume? Um cigarro normal e comum?

(...)"


© David Lodge (2001), Um almoço nunca é de graça, Lisboa, Gradiva


À colega Alexandra Neves, um obrigado pelo presente.

2 comments:

Ricardo Solha said...

«... O caminho dos símbolos é perigoso porque é fácil e sedutor(...). Nada mais fácil do que interpretar qualquer coisa simbolicamente.»
Fernando Pessoa

Fernando Faria Paulino said...

Ricardo Solha,
A "interpretação simbólica" em Fernando Pessoa é na sua essência, distinta da interpretação sígnica. De entre os inúmeros factores que interagem com esta última, há um, que a citação utilizada "escondeu", a dimensão contextual.
Um abraço,
/ffpaulino