Saturday, September 27, 2008

Por uma Pedagogia da Morte, uma abordagem antropológica

Numa sociedade que lida diariamente com a morte, em que somos bombardeados com notícias de catástrofes, guerras, actos terroristas, aborto e eutanásia, estaremos preparados para a nossa própria morte? Numa abordagem pluridimensional e pluridisciplinar, parece existir uma unanimidade em considerar que não sabemos lidar com a "morte íntima", e a necessidade de aprender a morrer, ou melhor "aprender a viver", como referem alguns autores, torna-se imperativa.

Os estudiosos são claros ao considerarem a necessidade de não ser feito tabu da morte, defendendo mesmo a sua integração no processo educativo. Os estudos realizados apontam para uma educação tanatológica que deveria visar em primeiro lugar as crianças e os jovens. Uma abordagem à morte como fazendo parte de todo o processo da própria vida parece ser a solução apontada pela maioria dos autores.

Tal como já afirmado, todos os dias somos inundados com casos de morte. Mas tudo indica que não estamos preparados para a "morte íntima", para a nossa própria morte e a daqueles que nos são próximos. Apenas nos encontramos preparados para a morte longínqua, a morte espectáculo, a morte dos outros. Acerca desta morte não existe tabu. O tabu abrange apenas a "morte íntima", a que nos toca ou tocará cada um de nós. A morte dos nossos familiares, dos nossos amigos. É esta morte que é ocultada, íntima porque nos atinge, porque nos aproxima dos nossos sentimentos. É esta morte que é tabu. Marie de Hennezel, psicóloga, chega mesmo a afirmar que, "o tabu da morte é um tabu do íntimo. Quando começamos a contemplar a realidade da morte, é para as profundezas de nós próprios que o olhar se dirige." (HENNEZEL, 1998, p. 46)

Há mesmo quem defenda a necessidade de edificar a sociedade em torno da morte, enfrentando a ideia da própria morte e da dos nossos entes queridos, pois é um facto que ela irá acompanhar-nos ao longo de toda a nossa vida, trata-se do ciclo natural da vida. Desde o nosso nascimento começamos a morrer. José Barros de Oliveira, professor-investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, defende que pensar no sentido da vida e da morte e assumi-la como parte constituinte natural da vida conduz à maturidade e ao equilíbrio. O facto de nos confrontarmos com a morte é sinal de "maturidade psicológica".

Mas como nos poderemos preparar para enfrentar a morte? Da mesma forma que temos de aprender a viver e a satisfazer as nossas necessidades biológicas, psicológicas e espirituais, temos igualmente de aprender a integrar nessa dinâmica de vida a nossa realidade de "seres-para-a-morte". Segundo José Barros de Oliveira, "se é tão natural morrer, porque não há-de ser natural educar sobre a morte e para a morte, falar da morte, própria e alheia, e ensinar (e aprender) a bem viver e a bem morrer? Não será possível uma pedagogia da morte, que poderíamos denominar educação tanatológica? A resposta é que não apenas tal educação é possível mas também necessária para uma educação integral. Não educar para a morte é praticar uma educação parcial e mentirosa. Se se fala da morte das civilizações, por exemplo, porque não falar da morte das pessoas, que a própria criança experiencia directamente ou através dos meios de comunicação social, e mesmo reflectir sobre a própria morte, que um dia infalivelmente acontecerá?" (BARROS, 1998, p.22)

Em relação à pedagogia da morte, como em relação a qualquer outra pedagogia, existe a necessidade da franqueza para com as pessoas, que em princípio têm o direito a conhecer a verdade àcerca da morte, e mais ainda, a verdade em relação à sua própria morte. Efectivamente, sem verdade e franqueza, não existe educação autêntica. Quanto às crianças, o problema da pedagogia da morte coloca-se de forma semelhante ao dos outros aspectos da educação. A criança também aqui tem direito à verdade, sendo contudo conveniente que esta lhe seja dada gradualmente e em termos adaptados à idade e mentalidade.

Analisemos seguidamente a ideia que a criança faz da morte, a qual se encontra dependente da sua evolução cognitiva e da representação do mundo envolvente.

Com cerca de dois anos de idade, a criança tem já uma vaga ideia do tempo. A morte nesta idade é encarada como sendo reversível, procurando normalmente a pessoa desaparecida como quem procura um objecto perdido. Entre os dois e os cinco anos de idade, surge a "idade das perguntas", continuando a considerar a morte reversível, a noção àcerca desta é no entanto confusa. Fala com naturalidade da morte dos animais, e mesmo das pessoas, mas não se sente abrangida. Diante da morte de uma pessoa representativa, podem tornar-se inseguras e carentes. E, um dos aspectos mais importantes a considerar aquando da morte de um ente querido, é o risco de a criança se julgar culpada pela sua morte. Entre os seis e os sete anos, começa a sentir medo e angústia da morte, embora não pense na sua própria morte. Por volta dos oito anos, entende a morte como irreversível, aceitando-a como coisa natural e inevitável, incluindo a sua própria morte. Começam verdadeiramente nesta idade as interrogações sobre a sua morte. Entre os nove e os doze anos, percebe que a morte é comum a todos os seres vivos, e que se trata afinal, de um estádio terminal. Na fase da pré-adolescência, acentua-se a ideia de que a morte não poupa ninguém, nem a ele próprio. Surge nesta altura a questão da vida para além da morte, e são tentados pelo ocultismo, espiritismo e reencarnacionismo.

No entanto, experiências realizadas com crianças e adolescentes, sujeitos a cursos tanatológicos, revelaram resultados com efeitos diferenciais nos indivíduos participantes. A par de resultados como, um melhor confronto com a realidade da morte, um aceitar melhor a vida e aceitar a morte como parte natural do processo da vida, uma melhor compreensão de toda a dinâmica da dor, do pesar, e uma melhor postura em caso de perda de algum ente querido, surgem resultados, como uma maior ansiedade em relação à morte.

Torna-se pois claro que terão de coexistir inúmeras formas de intervenção a nível individual, familiar ou grupal, não se podendo definir receitas genéricas. A análise individual dos casos, encontra-se dependente de um vasto conjunto de factores, de entre os quais a idade, o temperamento, a relação afectiva com o defunto e o meio envolvente, apresentam-se determinantes.

Uma das situações igualmente pertinente na pedagogia da morte prende-se com o lidar por parte dos profissionais de saúde com os doentes e os moribundos. As informações prestadas, nomeadamente pelos médicos, deverão ter em conta a própria capacidade do doente para encarar a verdade. Privar um doente da sua morte, é negar-lhe a última possibilidade para assumir a própria vida e a própria morte. E a incerteza e a dúvida em que muitas vezes permanece um doente, é bastante mais dolorosa, pois ela não permitirá uma adaptação gradual à realidade. Certo é que em termos práticos, as coisas desenrolam-se de forma diferente. Os médicos jogam na maior parte dos casos com probabilidades, e os seus próprios medos, ansiedades e muitas das vezes esperanças são transmitidas ao moribundo.

Ficou claro a necessidade de uma educação tanatológica adapatada às circunstâncias individuais, e que esta deverá visar em primeiro lugar as crianças e os jovens. Mas será possível, numa sociedade consumista como a nossa, preparar uma criança ou um jovem para a morte? "O mundo que nos rodeia não nos ensina a morrer. (…) Ele não nos ensina tão-pouco a viver. Apenas a ter sucesso na vida, o que não é a mesma coisa." (HENNEZEL, 1998:14).

A perda de valores espirituais, a sociedade consumista em que vivemos, e distante do humanismo, serão compatíveis com uma educação para a morte?

A resposta parece ser claramente negativa. Aliás, os próprios valores espirituais que emanam do cristianismo perante a morte, aquilo a que Edgar Morin designa por "o próprio cerne do cristianismo, o delírio da morte" (MORIN, 1988:199) apontam para o cristianismo como uma "religião de salvação" (MORIN, 1988:193). "Quem crê nele não morre" (S. João), ou as próprias palavras de Cristo: "Aquele que acreditar em Mim, viverá mesmo que tenha morrido". Trata-se do "apelo da imortalidade individual, o ódio da morte" (MORIN, 1988:194).


BARROS, José H. (1998), Viver a Morte, abordagem antropológica e psicológica, Coimbra, Livraria Almedina.
HENNEZEL, M. e Leloup, J.-Y. (1998), A arte de morrer, Editorial Notícias, Lisboa.
HOEBEL, E. Adamson e Frost, Everett L. (1995), Antropologia Cultural e Social, 10ª edição, S. Paulo, Editora Cultrix.
MORIN, Edgar (1988), O homem e a morte, 2ª edição, Publicações Europa-América, Mem-Martins.
Os Quatro Evangelhos (1974), 15ª edição, Lisboa, Difusora Bíblica.
SOARES, J.A. Silva (1986), Morte, in Polis Enciclopédia da Sociedade e do Estado, Vol. 4, Verbo, Lisboa, 407-47.


IN MEMORIAM, M. F. P.
27.09.2008

2 comments:

Tania Ferreira said...

Estava a fazer uma pesquisa sobre a morte e rituais de passagem e qual não foi a minha surpresa descobrir este blog da sua autoria...

Sinto falta das nossas conversas e do seu incentivo. :)

Fernando Faria Paulino said...

Olá Tânia,
O meu incentivo parte dos estudantes e, obviamente dos ex-estudantes.
Neste caso concreto trata-se de um incentivo proveniente da Irlanda ou Portugal?
Felicidades para si!